Ainda sobre o caso brutal do linchamento da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, no Guarujá: tão triste quanto o crime é perceber que muitos que protestam contra a violência o fazem sob um viés distorcido e preconceituoso.
Vendo as imagens do enterro de Fabiane, onde cerca de cem pessoas protestaram e pediram justiça, vi a foto de um rapaz segurando um cartaz que me chamou a atenção: “Confundiram uma Bíblia com um livro de magia negra. Mataram uma inocente”.
Vamos parar um pouco e analisar a frase.
O que parece motivar a ira do rapaz não é o fato de uma turba ter se juntado para fazer “justiça” com as próprias mãos, mas que a punição foi aplicada a uma “inocente”.
A frase dá a impressão de que Fabiane era “inocente” porque carregava uma Bíblia, e não um “livro de magia negra”.
Digamos que a moça estivesse carregando um livro sobre magia negra – sei que não é o caso, é só uma suposição: isso tornaria seu linchamento “aceitável”, ou pelo menos “compreensível”?
O linchamento foi uma atitude bárbara e revoltante, que precisa ser punida exemplarmente. Se é verdade que cem pessoas participaram do crime, as cem precisam ser presas e julgadas, assim como todos que presenciaram o crime sem chamar a polícia e sem fazer o menor esforço para evitá-lo.
Acho que muitos fatores podem ter contribuído para a barbárie: a brutalidade escondida em cada um, ignorância, ausência absoluta de noções básicas de civilidade, amor ao próximo e respeito às diferenças, desconfiança em relação ao poder público, certeza da impunidade e a incapacidade de entender a noção de responsabilidade individual em um ato coletivo, que faz com que pessoas cometam, em grupo, atos que provavelmente não cometeriam sozinhas.
Mas existe um aspecto fundamental nessa história e que e ainda não foi discutido: o desrespeito à liberdade religiosa.
Fabiane foi morta porque a confundiram com uma “bruxa”, e havia boatos de que uma "bruxa" estaria sequestrando crianças para rituais. Quando foi linchada, ela estaria, ainda segundo boatos, carregando um “livro de magia negra”.
Mas desde quando carregar um livro de magia negra é crime? Se uma pessoa praticar magia negra sem cometer nenhum delito, quem pode repreendê-la?
Não vou entrar na discussão sobre magia, crença e fé. É um tema muito amplo e que não vem ao caso. O ponto aqui é outro: qualquer pessoa tem o direito de acreditar no que quiser, e não pode ser condenada ou criticada por isso.
Ao protestar contra o linchamento de uma “inocente”, e não contra o ato de linchar, as pessoas podem estar, de forma inconsciente, corroborando a violência, como se fosse justificado, por exemplo, linchar um bandido pego em flagrante.
O que deve ser condenado é a barbárie de punir sem julgamento. Ninguém – culpado ou inocente – pode ser punido dessa forma.
P.S: Estou em viagem e com dificuldade para moderar comentários. Tentarei publicar os comentários quando possível, mas não terei tempo de respondê-los. A seção de comentários voltará a seu estado normal de interatividade após meu retorno, em 12 de maio. Peço desculpas pelo inconveniente.
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