Meninas e meninos, acreditem: existem festivais de música onde bandas são escolhidas só pela qualidade musical e não por ser da mesma agência de um headliner; onde você pode chegar perto do palco porque não há oitenta mil pessoas, mas oito mil; onde os palcos não são cobertos de anúncios, mas deixados livres para os artistas; onde não há promotores tentando te empurrar um anúncio de carro ou de Smartphone; onde o público não passa 90% do tempo tirando selfies e publicando no Instagram; onde a plateia busca novidades e se interessa por bandas que não conhece. Esse festival existe, chama Austin Psych Fest, e terminou nesse fim de semana.
O APF é um festival amadorístico, e isso é um elogio. Parece muito mais uma festa produzida por amigos do que, propriamente, um evento “profissional”. Há falhas estruturais – pouca iluminação, sistema de ônibus e táxis deficiente – mas tudo é perdoado, quando a música é tão boa, as pessoas tão amigáveis e o clima, tão cordial. Em mais de 25 anos cobrindo shows e festivais, nunca ouvi tanta música boa num mesmo lugar.
O festival acontece no Carson Creek, um rancho a 15 minutos de táxi do centro de Austin. O evento tem três palcos: o maior, o Reverberation, onde se apresentam as bandas mais populares; o Elevation, localizado no pé de um morro gramado e com fundos para o rio Colorado, onde tocam os artistas mais “tranquilos”, e a tenda Levitation, onde se apresentam os grupos mais pesados e barulhentos.
Nunca vi um staff de festival tão relaxado e cordial. A segurança era quase inexistente e, quando havia alguma, era para orientar o público, não para controlá-lo. Não houve revista na entrada e não havia segurança sequer próximo aos caixas. A área reservada aos artistas era coletiva e ficava ao lado do palco principal. Integrantes das bandas andavam pelo rancho e conferiam outros shows.
Os bares serviam vários tipos de cerveja, sucos, drinques com vodca e até vinho, mas nem sinal de refrigerantes. A seleção de comida privilegiava “food trucks” de bares e restaurantes locais, com uma ampla seleção de sanduíches, crepes, pizzas, comida oriental, grega, vegetariana e mexicana. Um caminhão distribuía água potável gratuitamente, para quem quisesse encher garrafas e cantis. Havia tendas de lojas locais, vendendo roupa, artesanato e discos de bandas da cena de Austin.
Não vi uma briga ou discussão. O público – uma alegra mistura de hipsters, hippies, freaks, góticos, famílias de roupa tie dye, gatas de visual pin up, metaleiros, bikers e loucos em geral – era educado, jogava lixo no lixo e não furava fila. Levamos nossa filha, de seis anos – o festival é all ages, e crianças até 13 anos não pagam – e teve gente que se ofereceu para levantá-la nos ombros, para que ela pudesse ver melhor o show.
Fazia um calor medonho em Austin – 32 graus, com umidade próxima de zero e muita poeira – e o sol só desaparece depois de 20h. Chegamos às 17h e o lugar fervia.
No palco principal, Shannon & the Clams (foto abaixo) fez uma empolgante mistura de new wave e rock de garagem dos anos 60, e já formou as primeiras rodinhas na frente do palco.
No palco Elevation, um bom público se esparramava na grama para ver o Terakaft (foto abaixo), dos desertos de Mali, na África, fazer um dos shows mais bonitos do dia. Formado por dois guitarristas malianos, um percussionista marroquino e um baixista canadense, tocaram música tuaregue, de tribos nômades do norte da África. O público não conhecia as canções, mas se deixou envolver pelos mantras e terminou o show de pé, dançando.
Voltando ao palco principal, pegamos uma parte do show dos suecos do Graveyard, que destruíram com um metal-stoner pesadão e mostraram por que foram escolhidos pelo Soundgarden para abrir uma recente turnê europeia.
De lá, corremos para a tenda Elevation para ver o trio White Hills. Eles são de Nova York, mas poderiam muito bem ser de Stonehenge ou de Salem, tão fortes as imagens cabulosas e assustadoras que sua música conjura. Space rock, psicodelia, microfonia, longas passagens instrumentais, Syd Barrett encontra Iggy Pop no ensaio do Hawkwind. Uma coisa linda e poderosa.
Ainda chocados com o assalto aos sensos promovido pelo White Hills, nos divertimos demais com o punk animado e imundo do Black Lips, que causou um pandemônio de mosh na frente do palco. Pela única vez na noite, os seguranças tiveram dificuldade em conter a multidão, tão animada que ameaçava derrubar a grade na frente da banda. Veja, aqui, um dos momentos mais tranquilos – talvez o único - do show:
Voltamos à tenda para ver os alemães do Kadavar. Não lembro quem foi o leitor do blog que me recomendou assisti-los, mas queria dizer uma coisa pra ele: obrigado, obrigado, obrigado, obrigado e obrigado, mil vezes, obrigado. O que foi aquilo? Três metaleiros com pinta de vikings, que detonaram a maior marretada sonora que levei em muito tempo. Pegue Black Sabbath, Kyuss, Blue Cheer e Melvins, ponha num pote, adicione três músicos extraordinários - incluindo um baterista que parece uma máquina e um guitarrista escolado em Hendrix e Tony Iommy – inclua uma boa dose de disciplina germânica, e você terá o Kadavar. Se esses caras não se tornarem gigantes em pouco tempo, vou ficar muito surpreso. Veja aí um trecho:
Era difícil ver qualquer coisa depois do Kadavar. No palco grande, se apresentavam os veteranos The Zombies, mas não estávamos no clima para ouvir o pop barroco de “Time of the Season”, por melhor que fosse. Acabamos no palco em frente ao rio, vendo o excelente folk-rock do Woods e impressionados com a beleza da projeção que artistas visuais faziam nas árvores do outro lado do rio. O palco iluminado, com o rio ao fundo e imagens projetadas na mata, formavam um cenário lindo.
Vimos ainda metade do bom show do Dandy Warhols, mas nossa filha pediu arrego e caiu dura na grama, de sono. Acabamos desistindo de ver a banda principal da noite, os heróis locais The Black Angels. Uma pena. Mas o dia já tinha sido incrível, e ainda havia o sábado...
P.S. 1: Amanhã, a segunda - e última - parte da cobertura do Austin Psych Fest.
P.S. 2: Estou em viagem e com dificuldade para moderar comentários. Tentarei publicar os comentários quando possível, mas não terei tempo de respondê-los. A seção de comentários voltará a seu estado normal de interatividade após meu retorno, em 12 de maio. Peço desculpas pelo inconveniente.
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