James Ellroy parece ter chegado naquela fase da carreira em que faz o que quer, como quer, e sem ligar pra ninguém. Seu novo livro, “Perfidia”, é um tijolo de 720 páginas de narrativa densa, em que dezenas – não é exagero – de subtramas se amarram numa teia complexa e quase impenetrável. Terminar “Perfidia” é uma tarefa dura, mas recompensadora.
O livro tem uma multidão de personagens. São tantos, na verdade, que Ellroy organizou uma lista – Dramatis Personae – no fim do livro, com uma pequena biografia de cada um. Exatos 87 personagens.
“Perfidia” é o primeiro volume de uma tetralogia que Ellroy está chamando de “Segundo Quarteto de Los Angeles”. O primeiro “Quarteto” – “Dália Negra”, “O Grande Deserto”, “Los Angeles, Cidade Proibida” e “White Jazz” – trouxe histórias policiais sombrias e violentas, passadas na cidade dos anjos entre os anos de 1946 a 1958.
Ellroy seguiu com sua “Trilogia Underworld USA” – pra mim, seu auge literário – com “Tablóide Americano”, “Seis Mil em Espécie” e “Sangue Errante”, livros imensos e ambiciosos, em que contava uma “história secreta” da política americana entre 1958 e 1972, misturando gângsteres, a CIA, o FBI, Hollywood e personagens reais como os Kennedy e Hoover. Para quem gosta de literatura “pulp”, é o Santo Graal.
Ao longo das duas “séries”, Ellroy utilizou vários dos mesmos personagens, que aparecem e desaparecem das narrativas dependendo do livro. Um policial que surge em “Dália Negra” pode ressurgir em “White Jazz”, por exemplo.
Com “Perfidia”, o autor recuou no tempo e iniciou uma narrativa que começa em 1941 e pretende chegar, no quarto livro, a 1958, “amarrando” os sete livros seguintes numa imensa cadeia de puro delírio “pulp”.
“Perfidia” conta três semanas na vida de Los Angeles, no fim de 1941. O livro começa em 6 de dezembro, quando a polícia da cidade é chamada a uma residência e encontra quatro membros de uma família mortos no que parece ser um ritual de seppuku. Mas Hideo Ashida, um brilhante detetive americano de família japonesa, tem certeza que o caso envolve assassinato.
No dia seguinte, os japoneses bombardeiam Pearl Harbor, e a cidade entra em estado de alerta com medo de novos ataques. Nas ruas, cidadãos japoneses – e chineses que os angelenos não conseguem reconhecer de japoneses – são espancados; há vários assassinatos raciais e a tensão atinge ponto de ebulição.
Partindo desse cenário, James Ellroy cria uma história absurdamente complexa, que envolve campos de concentração para orientais, confisco de bens e imóveis de famílias japonesas, um sádico plano para “transformar” japoneses ricos em chineses por meio de cirurgia plástica, grupos nazistas atuando na Califórnia, socialites de Hollywood acusados de atuação de Quinta-coluna, submarinos japoneses vistos nas praias da Califórnia e muitos, mas muitos, mas muitos crimes hediondos, a maioria perpetrados pelo hediondo Sargento Dudley Smith e descritos naquele estilo telegráfico, minimalista e brutal que Ellroy vem aperfeiçoando há 30 anos.
Não é fácil terminar “Perfidia”. Por várias vezes, tive de reler trechos anteriores para não me perder na história. E Ellroy não parece disposto a facilitar nada. O uso de gírias, linguagem de tabloide e palavras inventadas pela criatividade linguística sem limites do autor dificulta demais a compreensão de certos trechos. Tenho pena de quem vai traduzir o livro.
Achei que Ellroy estava tão absorto em chegar ao final da história que utilizou algumas saídas “fáceis” em certos momentos, prejudicando a credibilidade da trama. Mesmo quem é habitué de seu mundo estranho, em que personagens aparentemente distantes acabam por se revelar parceiros – ou até parentes – vai ter dificuldade em engolir certos trechos.
O que dizer de uma máquina fotográfica com disparador automático, programada para clicar a intervalos regulares e colocada numa esquina qualquer por Hideo Ashida para fotografar placas de carros suspeitos, que acaba por flagrar um policial recebendo suborno de um mafioso chinês? Ou de uma linha cruzada num telefone da polícia em que um detetive ouve dois superiores falando dele próprio?
Confesso que esses rombos de lógica frearam um pouco meu entusiasmo pelo livro. Mas, de vez em quando, Ellroy aparece com duas páginas de pura genialidade “pulp”, narradas com a rapidez e violência de uma sequência de jabs e uppercuts, e você lembra que não dá pra viver sem ele.
ADEUS, FRANCESCO!
O ano começa mal para o cinema: num dia, Anita Ekberg; um dia antes, Francesco Rosi, grande diretor do cinema político italiano e um dos prediletos de Scorsese, que se foi aos 92 anos. Rosi não só dirigiu clássicos como "Salvatore Giuliano", "Mãos sobre a Cidade", "Cristo Parou em Eboli", "O Caso Mattei" e "Cadáveres Ilustres", entre outros, como escreveu "Bellissima", de Visconti.
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