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“MERDA” PRA VOCÊ, BIRDMAN

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Há alguns meses, fui com minha mulher a um restaurante. Sentamos ao lado de uma mesa que reunia quatro atores. Eles agiam como se estivessem num palco: falavam alto, faziam gestos exagerados e carregavam as frases de dramaticidade. Em certo momento, dois deles levantaram e interpretaram uma cena de alguma peça ou filme, sei lá. Foi um espetáculo vergonhoso de egos inflados e autoimportância. Só faltou o facho de luz iluminando a mesa dos quatro magnânimos enquanto a patuleia assistia ao espetáculo, embevecida de tanto talento e genialidade.

Contei esse caso porque vi “Birdman (ou a Inesperada Virtude da ignorância)”, de Alejandro González Iñárritu, e tive a mesma sensação constrangedora de ver atores se divertindo mais que o público.

Há muito tempo não assisto a um filme tão ególatra, pomposo e arrogante. Foram duas horas de absoluto vácuo, embaladas como grande fábula moral. Preferiria passar a noite toda no restaurante ouvindo os malas fazendo piadas internas e jogando confete uns nos outros. Pelo menos a comida era boa.

Até o nome é pretensioso: “Birdman (ou a Inesperada Virtude da Ignorância”). Os personagens são pessimamente escritos e desprovidos de qualquer humanidade. São arquétipos, clichês ambulantes, sem nuance ou mistério. Que esse roteiro pestilento tenha sido indicado a um Oscar (foram nove indicações no total!) mostra o nível rastaquera do cinema “adulto” de Hollywood.

A história gira em torno de Riggan Thomson (Michael Keaton), um ex-herói de blockbusters de ação e ator principal de uma franquia chamada “Birdman” (“Homem-Pássaro”, captou? Keaton fez o “Homem-Morcego”, uau, que sacada!), que decide dirigir e atuar na Broadway em uma adaptação teatral de uma história de Raymond Carver. O objetivo de Riggan é receber a aprovação crítica que nunca teve na época de “Birdman”. Ele – a exemplo de Iñárritu - quer ser relevante.

Em sua cachola perturbada, Riggan tem visões e ouve vozes – na verdade, o próprio personagem Birdman – que lhe orienta sobre a vida. Ao mesmo tempo, o ator tem poderes de poltergeist, movendo objetos e causando acidentes no palco, incluindo uma luz que cai na cabeça de um ator que não está rendendo bem nos ensaios.

O tal ator é substituído por Mike Shiner (Edward Norton), um enfant terrible da Broadway, tão talentoso quanto intempestivo e que nunca “se vendeu” ao comercialismo de Hollywood. Shiner passa 24 horas por dia emulando James Dean, com uma atitude punk de “foda-se o mundo” e um cigarro no canto da boca enquanto trombeteia a própria genialidade. Resumindo: um babaca completo.

Riggan tem uma filha, Sam (Emma Stone, atriz cuja ideia de intensidade dramática é abrir os olhos até atingirem o tamanho de dois pires e quase saltarem das órbitas), uma junkie que acaba de sair de uma clínica de reabilitação e é contratada pelo pai para ser sua assistente pessoal.

Os outros personagens são igualmente caricaturais: temos as atrizes Lesley (Naomi Watts), namorada de Mike, e Laura (Andrea Riseborough), namorada de Riggan, que só aparecem na história como figurantes das idiossincrasias dos respectivos amantes; Jake (Zach Galifianakis), agente de Riggan e que passa o filme todo aos berros ou às lágrimas; e, no fundo do poço, Tabitha Dickinson (Lindsay Duncan), uma temida crítica e último bastião da “resistência” anticomercial do teatro. Tabitha escreve suas resenhas ácidas do balcão de um bar e despreza Riggan como produto do culto a celebridades. Mais clichê, impossível.

“Birdman” acompanha os ensaios que antecedem à estreia da peça. Riggan e Shiner se digladiam para superar ao outro, mesmo que, à vista da equipe, digam “break a leg” (no Brasil, “merda”, expressão usada para desejar boa sorte a um ator). Riggan é extremamente inseguro e não se acha à altura de encarar um palco da Broadway. Já Shiner é um poço de ressentimento contra o sucesso comercial de Riggan e faz de tudo para humilhá-lo.

O filme trata de temas que poderiam ser interessantes, se não fossem mostrados de forma tão maniqueísta e simplória. Iñárritu tem a mão pesada para a sátira e suas piadas sobre a idiotice do cinema comercial hollywoodiano soam óbvias e redundantes.

Pior: ele parece acreditar na própria genialidade e encena todas as sequências do filme com a pompa da abertura de “A Marca da Maldade”. Não há um movimento de câmera que não tenha sido pensado para surpreender pela ousadia ou um diálogo que não termine com algum ator gritando, chorando ou sendo incomodamente histriônico. Não é à toa que Keaton, Norton e Emma Stone foram indicados ao Oscar: a Academia ama atores que dão chilique.

“Birdman” é cheio de cenas claramente inventadas para dar ao filme um verniz de ousadia: Mike Shiner entra no palco com uma ereção de meio metro; Laura e Lesley se beijam; Riggan Thomson fica preso de cuecas fora do teatro e precisa andar por Times Square seminu; e – acredite! – Riggan fuma um baseado enquanto olha para os lados, paranoico, certificando-se de que ninguém o está flagrando nesse crime hediondo. A caretice não tem limites.

Mas nada é mais irritante que a forma como Iñárritu escolheu para filmar “Birdman”. O filme é quase todo composto de longos planos-sequências, cenas sem cortes em que a câmera se move o tempo todo e persegue os atores.

O plano-sequência é uma das ferramentas mais bonitas e complexas do cinema. Os cineastas que sabem usá-la – Hitchcock, Ophuls, Godard, De Palma, Scorsese, Kalatozov, Tarkovsky – a utilizam para destacar grandes sequências de seus filmes. Hitchcock fez um filme inteiro – “Festim Diabólico” - formado por dez longos planos-sequência, mas havia uma razão: ele queria narrar a história em tempo real e no mesmo cenário para dar uma ideia de claustrofobia e suspense. Nesse caso, a técnica foi usada a favor da história.

Já Iñárritu usa o plano-sequência para se mostrar. Não há uma razão plausível para contar o filme todo dessa forma, a não ser uma necessidade patológica de exibir destreza técnica. Iñarritu criou o cinema-ostentação.

Vendo o filme, lembrei na hora uma declaração de Lux Interior, cantor de minha banda predileta, o Cramps, em que esculhambava o grupo new wave B-52s: “Eu até gostava deles, até descobrir que eles tiravam aquelas perucas engraçadas quando saíam do palco.” O que Lux queria dizer é que nada é mais repugnante que a falsidade e que não devemos aceitar o fake.

Se alguém quer comparar essa baba de “Birdman” com um filme verdadeiramente ousado, sugiro ver “Mapas para as Estrelas”, de David Cronenberg, que deve estrear em 19 de fevereiro. O filme traz alguns dos mesmos temas de “Birdman” – egos mastodônticos de astros do cinema, culto a celebridades, uma estrela decadente tentando reerguer a carreira, uma filha junkie – mostrados com um bilhão de vezes mais talento e coragem. Cronenberg não posa de louco, ele é louco de verdade e mostra isso em seu trabalho, sempre pessoal e único. Já Iñárritu é um rebelde poseur que fez um filme calculadamente “muito doido, bitcho”. Periga levar o Oscar.

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