O Levitation é um festival de música que acontece anualmente em Austin, Texas. O evento está em seu oitavo ano e até 2014 chamou-se Austin Psych Fest. A curadoria é da banda The Black Angels, heróis da cena local e colecionadores obsessivos de discos.
Apesar de ser conhecido como um evento de música “psicodélica”, a verdade é que o Levitation tem uma seleção das mais ecléticas. Você pode ouvir de prog a stoner, de metal a ambient, de bandas indianas tocando cítaras a guitarristas africanos, de shoegazers a folk, de krautrock a country, de pós-punk a noise. Só música boa e estranha.
A edição de 2015 aconteceu entre 8 e 10 de maio (leia aqui minha cobertura da edição 2014). Foi a melhor experiência musical que já tive. Nunca ouvi tanta música de qualidade num só lugar.
E pensar que, por muito pouco, o evento não foi cancelado: dois dias antes do início, um temporal bíblico desabou sobre Austin. Foi a chuva mais forte registrada na região desde 1919 e alagou o rancho Carson Creek, que fica a 20 minutos de carro do centro de Austin. O rio Colorado, que corta o local do show, subiu cinco metros. Por sorte a chuva parou no dia seguinte, ou o festival certamente teria sido cancelado.
O alagamento forçou a organização a mudar a posição dos três palcos. O mais bonito deles, que fica à beira do rio Colorado, foi transferido para um local mais alto. Os outros dois – o palco principal, ao ar livre, e outro, menor, embaixo de uma enorme tenda - trocaram de lugar, o que diminuiu o espaço do festival e causou problemas de vazamento de som de um palco para o outro.
A logística, especialmente no primeiro dia, foi muito prejudicada. Os acessos ao festival estavam cheios de lama, assim como o estacionamento. Caminhões de carga tiveram dificuldade para chegar. Quando o evento abriu as portas, na tarde de sexta, 8 de maio, estruturas ainda estavam sendo montadas. O transporte de ônibus ao local foi caótico.
Felizmente, a chuva deu uma trégua, e os dois últimos dias do evento transcorreram sem maiores problemas. O festival divulgou uma nota na noite de sexta, explicando os problemas que teve com a chuva e pedindo desculpas pelas mudanças estruturais. O público, que adora o festival e parece ter grande orgulho de ter um evento desses em Austin, entendeu.
Para quem está acostumado a frequentar imensos festivais corporativos, ir ao Levitation é uma experiência transformadora. O staff do festival é formado por voluntários. A cordialidade é total. Não há sinal de logotipos de nenhuma empresa. Comida e bebida são vendidas por pequenos fornecedores locais a preços justos. Ninguém te revista na porta. Em três dias, não vimos uma discussão, uma briga, ninguém furando filas, nenhum carro buzinando no estacionamento.
No dia mais cheio, o público não deve ter passado de oito ou nove mil pessoas. Com exceção de alguns shows mais concorridos no palco principal, era possível chegar com facilidade a 15 metros de qualquer palco. O tempo para andar de um palco a outro não passava de cinco minutos.
Era comum esbarrar com artistas vendo os shows. Bobby Gillespie, do Primal Scream, estava sozinho, do nosso lado, vendo o show do Earth. Vi Joel Gion e Matt Hollywood, do Brian Jonestown Massacre, curtindo o show do Jesus and Mary Chain, Sean Lennon, do GOASTT, vendo o Fat White Family, e Wayne Coyne, do Flaming Lips, fotografando o show da banda de Lennon.
Mais importante: descobri várias bandas que não conhecia e passei a acompanhar por causa do evento.
Aqui vai um resumo do que vimos em três dias de Levitation:
SEXTA, 8 DE MAIO
A chegada ao local foi difícil, com o estacionamento ainda cheio de lama. Mas a alegria de ver a barulheira à My Bloody Valentine do trio Ringo Deathstarr, de Austin, compensou. Emendamos em outro grupo local, o quarteto Holy Wave, que mostrou uma bonita mistura de psych rock à Pink Floyd dos primórdios com partes mais barulhentas que lembravam o rock de garagem sessentista de 13th Floor Elevators e Seeds.
E como há bandas boas no Texas, não? Depois do Holy Wave, fomos ver outra banda texana, o quarteto Indian Jewelry, com seus experimentos eletrônicos à Suicide, misturando bateria eletrônica, noise e guitarras altíssimas. Bom demais.
Demos uma parada rápida no palco principal para conferir os ótimos nova-iorquinos do DIIV (pronuncia-se “Dive”) antes de ir à tenda para o show mais aguardado da noite (pelo menos por nós): o duo de noise-jazz-hardcore Lightning Bolt.
Eu tenho os discos do LB, mas só tinha visto a banda no Youtube e no DVD “The Power of Salad”. Os discos são excelentes, mas não fazem justiça ao LB. A experiência de vê-los ao vivo é muito mais intensa e impressionante do que qualquer gravação.
O Lightning Bolt é uma dupla formada pelo baterista e cantor Brian Chippendale e o baixista Brian Gibson. O som é massacrante, um hardcore velocíssimo e anguloso, cheio de paradas e partes “quebradas” com influências de free jazz (os caras são fãs de Sun Ra e Ornette Coleman) e de bandas japonesas de noise. Os shows são intensos. A banda frequentemente toca no chão, cercada pelo público. Veja esse trecho de um show no Japão:
Saímos do Lightining Bolt completamente atordoados e felizes. Foi tão bom que compensou perder o White Fence.
Era difícil ver qualquer coisa depois do Lightning Bolt. Vimos cinco minutos do Spiritualized, mas não deu pra aguentar o ar blasé de Jason Pierce, e corremos para pegar o fim do The Soft Moon, excelente projeto de synth-punk do californiano Luis Vasquez. Enquanto o público lotava o palcão pra ver o Tame Impala, preferimos pegar o caminho de casa.
SÁBADO, 9 DE MAIO
O sol saiu forte no sábado. Chegamos cedo para ver o folk jazzístico do guitarrista Ryley Walker. O disco dele, “Primrose Green”, está em altíssima rotação há semanas aqui em casa, e o show foi muito bonito, apesar do calor.
Continuamos no palco menor, ao ar livre, para ver os chineses do Chui Wan e seu psych-rock à Mutantes. Bonito e inusitado. Logo depois subiu ao palco o Spindrift e suas quatro guitarras, fazendo um emocionante folk rock instrumental que lembrava trilhas de faroestes spaghetti de Ennio Morricone. Em que outro festival do mundo você pode emendar psicodelia chinesa com rock tex-mex?
Enquanto alguns amigos, incluindo o grande Fábio Massari, piravam na microfonia pesadona à Velvet do The Black Ryder, corremos ao palco principal para ver John Dwyer e seu Thee Oh Sees.
Que banda única e incomum é o Thee Oh Sees. Sempre me lembrou dos experimentos pós-punk de Pere Ubu, Mission of Burma e outros iconoclastas, só que mais agressivo e barulhento. Dwyer não para de gravar e de mudar a formação do grupo. Essa encarnação mais recente tem dois bateristas e um baixista, além do próprio Dwyer nas guitarras, teclados, efeitos e vocais. Vejam que lindeza:
O show do Thee Oh Sees foi tão bom que nos obrigou a perder duas bandas que queríamos ter visto, Mystic Braves e This Will Destroy You. Vimos o comecinho do Primal Scream, mas logo abandonamos Mister Gillespie e sua turma para rumar ao palco onde ia se apresentar Dylan Carlson e o Earth.
Você pode não conhecer Dylan Carlson, mas certamente conhece a música “In Bloom”, do Nirvana: “He's the one / who likes all our pretty songs / and he likes to sing along / and he likes to shoot his gun” (“Ele é o cara / que gosta de nossas canções bonitos / e gosta de cantar junto / e gosta de atirar com sua arma”). Kurt Cobain escreveu “In Bloom” sobre Dylan Carlson, que era seu melhor amigo, parceiro de drogas e confidente. Era também quem conseguia heroína e outros breguetes para Kurt e Courtney. E a “arma” que Carlson gostava de atirar era a espingarda que Kurt pediu emprestada e com a qual estourou os próprios miolos.
Além de fazer parte da mitologia suicida do rock, Carlson criou, há mais de 20 anos, o Earth, banda considerada fundadora do chamado drone metal. Imagine um Black Sabbath tocando a um terço da velocidade e você terá uma ideia do som do Earth. O oitavo e mais recente disco deles, “Primitive and Deadly”, é o primeiro com vocais e é uma obra-prima.
O show foi uma coisa linda: lento, intenso e viajandão. Seis canções em uma hora e pouco, mantras lúgubres de nomes como “A Serpente Está Chegando”. Carlson anunciava os nomes das faixas, e deu pra entender porque o Earth é uma banda instrumental: a voz do cara lembra a de Roni Cócegas. E seu rosto, apesar de ter só 47 anos, também. Heroína é uma merda. Sorte de Carlson que saiu dessa.
Veja o Earth em setembro de 2014, tocando “Torn by the Fox of the Cescent Moon”, primeira faixa de “Primitive and Deadly”:
Encerramos a noite vendo o Jesus and Mary Chain, uma banda de discos extraordinários e shows nem tanto. Mas este foi bom, com o repertório do clássico álbum “Psychocandy” (1985) e hits como “April Skies”, “Blues from a Gun” e “Happy When it Rains”. Jim Reid até sorriu, coisa rara. E William tá a lata do Leo Jaime.
DOMINGO, 10 DE MAIO
Como é bom chegar num show sem saber nada sobre o artista e sair de lá convertido. Isso aconteceu duas vezes nesse dia: a primeira foi como Samsara Blues Experiment, um trio alemão que mostrou um stoner demencial. A segunda foi ainda mais impressionante: o trio ZZZs, formado por três japonesinhas lindas e estilosas que faz um pós-punk anguloso à Gang of Four com pitadas de noise. A guitarrista deve ter passado a vida escutando East Bay Ray e Andy Gill. Coisa fina. No meio do show, um inglês me perguntou: “What the fuck is this? This is fucking brilliant!”
Brilhante também foi o show de The Ghost of a Saber Tooth Tiger (GOASTT), banda de Sean Lennon e da namorada, Charlotte Kemp Muhl (leia aqui um texto que fiz sobre a banda). “Não posso acreditar que fomos convidados para esse festival, é o melhor evento de música do mundo hoje em dia”, disse Sean Lennon.
Até tentamos descobrir o que as pessoas veem de tão especial no tal Mac De Marco, mas não aguentamos mais de 10 minutos de seu pop engraçadinho e fomos correndo pegar o fim do Eternal Tapestry e seu acid rock espacial, antes de conseguir um bom lugar pra ver o The Black Angels e seu rock de garagem psicodélico à Velvet Underground. Como sempre acontece em Austin, foram ovacionados.
Em certo momento da noite, havia duas bandas excelentes tocando no mesmo horário que o Black Angels, e conseguimos ver uns 20 minutos de cada: a primeira foi o Follakzoid, um trio chileno que faz uma música densa e hipnótica. Veja:
Depois corri pra pegar uma parte do Fat White Family, um bando de squatters ingleses que lançaram um dos melhores discos dos últimos anos – “Champagne Holocaust” – não acreditam que a música salva ninguém e fazem uma barulheira infernal que lembra Birthday Party, Fall, ou qualquer outra banda alta demais, esculachada demais e bêbada demais. Que bom que ainda existem grupos como eles.
Corremos ao palco principal para ver a suposta “maior” atração do festival, o show de reunião do 13th Floor Elevators depois de 47 anos. E foi uma decepção gigante. Claro, o repertório é imbatível, e ver os velhinhos juntos depois de tanto tempo prometia ser emocionante. Mas o tempo é implacável. A voz de Roky Eryckson virou um fiapo e o som da banda não empolgou nem em clássicos como “You’re Gonna Miss Me”. Valeu só pelo acontecimento histórico.
Por sorte, o Levitation teve o encerramento que merecia, com um show colorido e emocionante do Flaming Lips. Difícil pensar em uma banda mais consistentemente brilhante nos últimos 30 anos que esses malucos de Oklahoma, que conseguiram filtrar as sandices do Butthole Surfers, as experiências sônicas do krautrock e o folk rock cósmico de Neil Young e Crazy Horse e criar uma música tão acessível, bonita e pessoal. Steven Drozd é o cara.
Saímos do Carson Creek Ranch esgotados, mas já fazendo planos para o ano que vem. Porque o Levitation tornou-se um momento importante para a cultura musical aqui de casa. O que conhecemos de bandas por causa do festival não é brincadeira. Sem pensar muito, posso listar Woods, Dead Meadow, Sleepy Sun, Bombino, La Femme, Kadavar, King Gizzard & the Lizard Wizards, Graveyard, Peaking Lights, Night Beats, Unknown Mortal Orchestra, Mikal Cronin, Moon Duo, White Hills, Bardo Pond e The Myrrors, entre muitas e muitas outras.
Sei que o dólar está pela hora da morte e que ir a um evento desses não sai barato (por sorte, havíamos comprado passagens e ingressos antes da última alta do dólar), mas, se você tiver a oportunidade, vá. O Levitation é um desses festivais que renova seu gosto pela música e abre horizontes.
Quem vai a um festival desses nunca mais põe os pés num Lollapalooza.
The post Levitation 2015: cobertura completa appeared first on Andre Barcinski.