Assistir a “What Happened, Miss Simone?”, a cinebiografia da cantora Nina Simone (1933-2003) , é uma experiência deprimente. Não pelo filme, que é ótimo, mas pela comparação entre Nina Simone e o atual cenário musical. O documentário escancara o abismo de talento e relevância que existe entre a música contemporânea e a de 30 ou 40 anos atrás.
Disponível no Netflix brasileiro, o documentário teve a participação da família de Simone e, talvez por isso, ignore algumas passagens mais dramáticas e tristes da vida da cantora, especialmente o terço final de sua trajetória, marcada por depressão, drogas e surtos psicóticos. Nem sinal da célebre história em que Nina Simone deu um tiro num executivo de gravadora, ou de relatos dos inúmeros shows que ela interrompeu para sair na porrada com alguém na plateia.
O essencial está ali: nascida Eunice Waymon numa família pobre de oito irmãos na Carolina do Norte, começou a tocar piano em cultos ministrados pela mãe, uma pastora metodista. Eunice sonhava em ser pianista clássica, “a primeira negra pianista clássica dos Estados Unidos”. Mas a realidade foi bem mais dura, e ela ganhou a vida cantando blues e jazz em clubinhos de Atlantic City. Mudou o nome para Nina Simone para que a mãe não descobrisse.
Em 1959, George Wein, o famoso empresário que criou o Newport Jazz Festival, viu Nina Simone pela primeira vez e ficou marcado para sempre pela experiência: “A profundidade e escuridão daquela voz me fascinaram de uma maneira difícil de explicar”. Wein não foi o único.
Dois anos depois, Simone casou com Andrew Stroud, um policial barra pesada do Harlem, que largou a polícia para virar empresário da cantora. Nina e Andrew tiveram uma filha e ganharam bastante dinheiro, mas a relação do casal era das piores. Ele a submetia a um calendário brutal de shows e, vez por outra, lhe dava surras terríveis.
Em setembro de 1963, uma bomba explodiu numa igreja em Birmingham, no Alabama, matando quatro crianças negras. O atentado supremacista ocorreu dois meses depois do assassinato do líder negro Medgar Evers, amigo de Nina, e ela entrou em parafuso. Compôs e gravou “Mississipi Goddam”, uma das músicas de protesto mais furiosas de todos os tempos, e efetivamente destruiu a própria carreira. Passou a cantar somente músicas de cunho político. Seus discos pararam de vender e os shows rarearam.
Os assassinatos de John Kennedy (1963), Malcolm X (1965), Bobby Kennedy (1968), Martin Luther King (1968) e Fred Hampton (1969) deram a Nina a certeza de que uma guerra racial estava em curso no país, e ela passou a defender a violência contra o “domínio branco”. Uma das cenas do filme mostra a cantora perguntando à plateia em um show: “Vocês estão prontos para incendiar prédios?”.
Se hoje a radicalização política de Nina Simone pode soar paranoica e agressiva, é preciso analisar o contexto da época e o passado da cantora para tentar entender suas motivações. Numa época em que amigos e políticos que ela admirava eram mortos, jovens negros eram mandados para o Vietnã em números proporcionalmente muito maiores que jovens brancos, e grupos armados como os Panteras Negras prometiam incendiar o país, todo o ressentimento de uma infância passada em um lugar segregado, onde os pais não podiam sequer entrar nos teatros onde Nina tocava piano, fez explodir nela uma fúria incontrolável.
Por quase dez anos, Nina Simone sabotou a própria carreira. Defendeu o poder negro “por todos os meios necessários”, aproximou-se de grupos radicais e criticou artistas negros que, segundo ela, faziam concessões ao mercado.
No início dos anos 70, falida e cansada de apanhar do marido, separou-se de Stroud e decidiu abandonar os Estados Unidos. Foi para Barbados, onde teve um caso com o Primeiro Ministro local, e depois para a Libéria, onde pôde conhecer suas raízes africanas. Mas sua psique estava abalada, e ela começou a dar sinais de depressão e bipolaridade. A filha conta que, numa viagem à Libéria, apanhou tanto da mãe que fugiu de volta para Nova York.
Se o filme pula alguns momentos mais constrangedores da vida de Nina Simone (a palavra “cocaína” sequer é citada), vale pelas imagens da mulher cantando e tocando piano. O que é aquilo? Já existiu algum performer mais intenso e imprevisível?
Vendo Nina cantando “I Put a Spell on You”, “Young, Gifted and Black” ou “Mississipi Goddamm”, a sensação é de ver alguém tirando a roupa no palco. A mulher nunca teve máscaras ou se escondeu por trás de teatralidades e encenações. Ela era sua música.
Há uma cena de um show em Montreux, em 1976, que marcou a volta da cantora à Suíça depois de uma ausência de oito anos, em que ela encara a plateia por uns dois minutos, sem dizer nada, como se estivesse tentando entender o que fazia ali. A confusão mental de Nina Simone é evidente. Só ela podia saber o que estava pensando. Mas a plateia ficou muda. Ninguém deu um pio, respeitando aquele momento tão íntimo em que a cantora, mesmo na frente de tantas pessoas, estava sozinha com ela mesma.
Ouvir Nina Simone destrói tudo que vem depois. É impossível ver esse filme e depois ligar a TV, ouvir o rádio ou saber as últimas novidades do Facebook sem pensar na futilidade e no nível rastaquera do nosso cotidiano. Resumindo: a obra de Nina Simone está aí, e a vida é muito curta pra perder com besteira.
Bom fim de semana a todos.
P.S.: Estarei fora até o fim da tarde e impossibilitado de moderar comentários. Se o seu comentário demorar a ser publicado, peço desculpas e um pouco de paciência. Obrigado.
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