Até o início dos anos 1990, as músicas que faziam sucesso nos Estados Unidos – e, por consequência, em quase todo o mundo – haviam sido compostas e produzidas, na maior parte, por norte-americanos e britânicos, com a eventual aparição de um australiano aqui ou ali.
Mas isso mudaria em 1992. E tudo por culpa de um toca-fitas defeituoso.
Naquele ano, um produtor musical sueco chamado Dag Krister Volle, mais conhecido por Denniz PoP (assim mesmo, com dois “P” maiúsculos), recebeu uma fita demo de uma banda local. Denniz (foto abaixo) pôs a fita para tocar em seu carro – ele sempre ouvia música no carro – e odiou o que ouviu. Era um tecnopop chinfrim com uma levada de reggae.
Acontece que o toca-fitas do carro de Denniz estava com defeito, e ele não conseguiu tirar a fita do aparelho por três semanas. Durante esse tempo, foi obrigado a ouvir a maldita canção incontáveis vezes. Pouco a pouco, começou a imaginar o que poderia fazer para melhorá-la: quem sabe trocando um verso aqui, mudando o tom do refrão, acelerando a batida acolá, a música não teria chance de ser um hit?
De repente, Denniz teve uma epifania. Descobriu exatamente o que fazer com a canção. Assim que chegou ao estúdio, ligou para a banda: “Quero produzir vocês. Venham imediatamente”.
A banda era o Ace of Base, e a música, “All That She Wants”.
Mas gravar uma música de apelo comercial só resolvia uma parte do problema. Torná-la um hit nos Estados Unidos, o maior mercado do mundo, era bem mais difícil. Para isso, Denniz contou, de novo, com o destino.
Poucas semanas depois de “All That She Wants” ser lançada na Europa e fazer imenso sucesso em países como Dinamarca, Áustria e Holanda, o então chefão da gravadora norte-americana Arista, Clive Davis, passeava pelo Mediterrâneo em um iate. Davis tinha 60 anos e era um dos maiores nomes da indústria da música de todos os tempos (leia aqui um texto que fiz sobre a autobiografia dele), conhecido por ter assinado Janis Joplin, Aerosmith, Santana, Bruce Springsteen, Earth, Wind & Fire e Neil Diamond, além de descobrir Whitney Houston e Alicia Keys.
Assim que ouviu “All That She Wants”, Davis mandou o capitão parar o iate no primeiro porto, achou um telefone, ligou para a gravadora do Ace of Base e comprou os direitos do LP “The Sign” para os Estados Unidos. Resultado: 23 milhões de cópias vendidas e um dos mais populares LPs de estreia da música, junto a Guns N’ Roses, George Michael, Whitney Houston, Boston, Backstreet Boys e Norah Jones.
Essa história sensacional abre um livro igualmente sensacional, “The Song Machine – Inside the Hit Factory”, de John Seabrook, um relato minucioso e divertidíssimo sobre como uma gangue de jovens produtores de várias partes do mundo – Suécia, Noruega, Coréia do Sul, Estados Unidos – veio a dominar o a música pop dos últimos 25 anos.
Seabrook, jornalista da revista “The New Yorker”, faz perfis de gente como os suecos Denniz PoP e Max Martin (leia aqui), o duo norueguês Stargate, os americanos Dr. Luke (leia aqui) e Ester Dean e o sul-coreano Lee Soo-Man, entre muitos outros produtores e agentes.
Ele conta a saga de Britney Spears - do auge à clínica psiquiátrica - revela como Rihanna foi descoberta por um produtor de férias em Barbados, narra a história surreal da família de Katy Perry (ex-hippies, discípulos de Timothy Leary e do LSD, que se convertem em religiosos fanáticos), conta como Ke$ha foi encontrada em um muquifo, louca de crack e álcool, e levada diretamente para uma sessão de gravação que rendeu uma música top da parada norte-americana.
Os tópicos são interessantíssimos: como Lou Pearlman criou os Backstreet Boys e o N’Sync e Lee Soo-Man inventou o “K-Pop”, o pop coreano em que crianças são submetidas a uma disciplina militar de sete anos de testes e ensaios antes de subir num palco. O livro destrincha as novas formas de produção que dispensam músicos, substituem estúdios por laptops e onde astros, ocupados demais com turnês lucrativas, gravam seus vocais em quartos de hotéis e camarins.
Seabrook mostra como o pop atual é uma verdadeira linha de montagem, em que megaprodutores têm equipes de 15 ou 20 pessoas, cada uma trabalhando em partes específicas de uma canção. Há especialistas em criar refrão, em fazer as batidas e em “comping”, um processo lento e trabalhoso que se resume em dividir toda a letra em sílabas e escolher, dentre os inúmeros “takes” gravados pelos cantores, as sílabas mais bem gravadas, para então rearranjá-las em computador, montando um verdadeiro Frankenstein sonoro.
Voltando ao Ace of Base: Seabrook vê em “All That She Wants” um modelo para o pop que dominaria o mundo: uma música “global”, mas sem uma origem definida, misturando batidas poperô do Europop, ritmos “estrangeiros” como reggae e música oriental, refrães bombásticos do rock de arena (um modelo é a produção de Mutt Lange para os grandes sucesso do Def Leppard nos anos 80) e “hooks” (“ganchos”) espalhados por toda a música.
É impressionante a semelhança da estrutura de “All That She Wants” com uma canção que citei aqui no blog ontem (leia aqui), “Lean On”, do Major Lazer, a canção mais ouvida em streamings em 2015.
Outra semelhança curiosa entre a canção do Ace of Base e outros hits do pop, especialmente os produzidos por suecos: muitos têm letras que não fazem sentido algum. E a razão é simples: os compositores não falavam inglês direito.
Em “All That She Wants”, a vocalist principal do Ace of Base, Linn Berggren, canta:
All that she wants / is another baby
A frase é estranha: tudo que ela quer é “outro bebê”? Por quê? Ela já tem uma criança?
Na verdade, “baby” queria dizer “namorado”.
Seis anos depois, o produtor sueco Max Martin compôs “Baby One More Time”. O refrão dizia:
Hit me baby / one more time
A tradução correta é “Bata em mim mais uma vez”. Martin ofereceu a música ao trio vocal feminino TLC, mas elas recusaram, com o argumento de que nunca pediriam para alguém espancá-las.
Martin não entendeu nada. Para ele, “hit me” era sinônimo de “telefonar”.
A música, como sabemos, foi parar com Britney Spears, e liderou paradas em todo o mundo. O que prova que na música pop mais vale a forma que o conteúdo. Se uma frase soar bem, não precisa fazer sentido.
The post Quem manda na música pop? appeared first on Andre Barcinski.