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O FILME QUE A PRINCESA LEIA DESTRUIU

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Em 1976, William Friedkin era o rei de Hollywood. Seus dois últimos filmes, “Operação França” (1971) e “O Exorcista” (1973), foram estouros de público e crítica. O diretor vinha numa sequência fabulosa e podia fazer o que quisesse.

Ele decidiu filmar o romance “O Salário do Medo”, de Georges Arnaud. O livro, sobre um grupo de mercenários que aceita a missão quase suicida de transportar carregamentos de nitroglicerina em caminhões pelas selvas da América do Sul, já havia sido adaptado para o cinema em 1953 pelo francês Henri-Georges Clouzot, um dos heróis de Friedkin, num filmaço com Yves Montand no papel principal.

Em junho de 1977, depois de quase dois anos de uma filmagem complicadíssima e um processo de edição exaustivo, chegou aos cinemas “Sorcerer” (no Brasil, “Comboio do Medo”).  Os problemas na produção haviam triplicado os custos do filme, mas Friedkin não parecia preocupado. Afinal, ele tinha feito “O Exorcista”, que até então só vendera menos ingressos que quatro filmes na história: “E o Vento Levou”, “A Noviça Rebelde”, “Os Dez Mandamentos” e “Doutor Jivago”.

Um mês antes da estréia de “Sorcerer”, no entanto, chegou aos cinemas norte-americanos um filme de ficção-científica dirigido por George Lucas: “Guerra nas Estrelas”. Subitamente, o mundo todo só queria falar do penteado da Princesa Leia. Ninguém queria mais saber de William Friedkin e seu cinema sombrio e violento.

Em sua autobiografia, “The Friedkin Connection”, o cineasta lista algumas razões para o fracasso do filme: “’Guerra nas Estrelas’, que era pura fantasia, com mocinhos e bandidos claramente definidos, havia mudado o gosto do público; ‘Sorcerer’ foi apresentado como um filme realista e brutal; os quatro personagens principais eram fugitivos da Justiça; o título era enganoso (“Sorcerer” quer dizer “Feiticeiro”, e muita gente achou tratar-se de um filme de terror, especialmente depois de “O Exorcista”); e o fim não era só ambíguo, mas melancólico.”

O resultado é que “Sorcerer” mudou a carreira de Friedkin para sempre. Ele foi despedido da Universal, virou persona non grata em vários estúdios e seus filmes passaram a ter enorme dificuldade de fazer sucesso. “Meus filmes se tornaram mais obsessivos, menos acessíveis ao público e se tornariam ainda mais sombrios no futuro.”

“Sorcerer” sumiu dos cinemas rapidamente. Por muitos anos, era difícil até encontrá-lo em vídeo e DVD. Assisti nos anos 80, mas, sinceramente, não lembro onde.  Não via o filme há uns 30 anos, até que, mês passado, em viagem aos Estados Unidos, comprei o DVD, que havia sido relançado (aliás, Friedkin entrou na seção de comentários da Amazon esses dias e pediu aos fãs para comprar o Blu-ray e não o DVD que, segundo ele, não foi autorizado; de fato, a imagem do DVD é deplorável).

O filme é sensacional. Quem gosta do estilo acelerado dos “thrillers” de Friedkin vai babar na camisa. Nos primeiros dez minutos, vemos um assassinato no México, um atentado a bomba em Jerusalém, o suicídio de um rico industrial em Paris e um inacreditável assalto a uma igreja em New Jersey, onde quatro bandidos irlandeses roubam uma paróquia cujo padre é irmão de um temido gângster siciliano.

Os quatro responsáveis pelos crimes – o assassino de aluguel Nilo (Paco Rabal, de “A Bela da Tarde”, de Buñuel), o terrorista árabe Kassem (Amidou), o magnata falido Victor Manzon (Bruno Cremer) e o assaltante Jackie Scanlon (Roy Scheider) – fogem, mudam de identidade e acabam em uma imunda e depressiva cidade em um país não-identificado da América do Sul.

O lugar faz os cenários poeirentos dos faroestes de Sam Peckinpah parecer o Taiti: cadáveres são abandonados na rua, crianças brincam com armas e um ex-oficial nazista serve drinks no único bar local, um buraco infecto. Toda a economia da região depende de uma empresa de petróleo dominada por militares corruptos.

Depois que uma explosão num poço torra – literalmente – dezenas de moradores, a empresa recruta os quatro para levar dois caminhões, carregados de nitroglicerina, até o poço, uma viagem de 200 milhas (321 km) no meio da selva.

“Sorcerer” é uma odisséia existencial, estranha e delirante. Parece um pesadelo. A trilha sonora, do grupo eletrônico alemão Tangerine Dream, adiciona um ar soturno e enigmático ao filme. Dá para entender porque multidões preferiram “Guerra nas Estrelas” - diversão para toda a família - à feiúra dos personagens e cenários de “Sorcerer”. A partir dali, 1977, o público médio foi ficando cada vez menos paciente para filmes que confrontam e não confortam.

Enquanto o Blu-ray de “Sorcerer” não chega ao Brasil, apele ao Cine Torrent. Só não deixe de assistir.

OUTRO FILMÃO, MAS NA TV

Hoje, às 16h30, o canal Arte 1 exibe “O Homem de Aran” (1934), de Robert Flaherty, sobre a vida dos habitantes das Ilhas Aran, na costa da Irlanda, um dos lugares mais inóspitos do planeta. É de chorar.

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