Pedi a meu grande amigo Allan Sieber, um dos caras que mais entende de cartuns e quadrinhos no Brasil, para escrever sobre a perda dos artistas do “Charlie Hebdo”. Allan não só escreveu um texto responsa, como ainda selecionou alguns de seus cartuns prediletos de Wolinski e Charb. Confira...
Certamente a última coisa que passava pela cabeça do cartunista francês Wolinski na manhã de quarta-feira era que dois psicopatas fanáticos invadiriam a redação do periódico de humor “Charlie Hebdo” e abririam fogo contra editores, jornalistas e cartunistas. É mais provável que estivesse pensando em bundas, peitos e discussões idiotas de casais. Uma morte estúpida - e qual não é, oras? – para alguém que sempre usou a estupidez das relações humanas como a matéria prima do seu trabalho. Homens vs. mulheres, feministas vs. machistas, direita vs. esquerda, racistas vs. imigrantes.
Dos quatro cartunistas mortos, eu tinha intimidade com o trabalho de dois, Wolinski e Charb, o editor do “CH” nos últimos anos e um sujeito culhudo de verdade. Imaginem: em 2011, depois de ter a redação incendiada por extremistas (por conta de uma capa com Maomé), o número seguinte estampava um desenho com o próprio Charb e um muçulmano de turbante se beijando na boca... Porra, para mim isso já era motivo pro cara ganhar uma estátua em praça pública. El Señor Fodón!
Há alguns anos, havia uma discussão ridícula na França sobre responsabilidade no jornalismo, limites do humor, essas merdas de sempre, aí a capa do “CH” era branca com um lettering em vermelho: “Um jornal responsável”. Dentro só tinha as legendas dos cartuns, o resto era TUDO branco. Nunca ninguém teve a manha de fazer um jornal mais chapa branca que esse.
Wolinski eu conheci através de um álbum que a L&PM lançou por aqui nos anos 80 e que certamente influenciou muita gente, de Adão Iturrusgarai a Caco Galhardo, passando pelos novos enfant terribles Pablo Carranza, Daniel Lafaiete e os toscos da revista Xula. O desenho variava do chutadão vamos-terminar-essa-merda-rápido-que-eu-tenho-coisa-melhor-pra-fazer até desenhos sombreados finamente, com muito domínio de expressão e corpo humano. Ou seja, quando ele tinha saco, ele desenhava pra caralho. Aliás, toda turma da “Hara-Kiri” (de onde veio a “Hara-Kiri Hebdo”, que depois virou a “Charlie Hebdo”) era de matar: Reiser, Wolinski, Cavanna, Cabu, o impagável Professeur Choron e muitos outros monstros. Esses pesos-pesados influenciaram os maloqueiros da geração 80 dos quadrinhos franceses, a chamada BD Rock, grande parte deles publicados aqui no Brasil pela revista Animal, como Vuillemin – o cartunista mais podre de todos os tempos - , Margerin e Jano.
Wolinski dizia para a esposa que, quando morresse, queria que suas cinzas fossem atiradas no vaso sanitário, assim, ele veria a bunda dela todos os dias. Espero que a viúva faça essa delicadeza. Um brinde ao mestre! A votre santé!
P.S.: Dei uma entrevista para a CBN sobre meu livro "Pavões Misteriosos" e as histórias do pop brasileiro dos anos 70 e 80. O link está aqui.
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