Ano passado, jornais do mundo inteiro publicaram artigos sobre o empresário brasileiro Zero Frietas, um ricaço do setor de transportes que coleciona discos, tem cinco milhões de vinis e contratou uma equipe de 17 pessoas para comprar coleções por todo o planeta, catalogar os LPs e guardá-los em imensos galpões.
A história de Zero é curiosa, mas, sinceramente, não consigo respeitá-lo como “colecionador”. Ele me parece mais um acumulador, um homem que usa sua fortuna para sair comprando discos sem a menor cerimônia ou senso crítico.
Tenho muito mais admiração pelos sujeitos perfilados no livro “Do Not Sell At Any Price: The Wild, Obsessive Hunt for the World’s Rarest 78 Rpm Records” (em tradução livre: “Não Venda por Preço Algum: A Louca e Obsessiva Busca pelos Discos de 78 Rotações Mais Raros do Mundo”), de Amanda Petrusich.
Petrusich, colaboradora do jornal “The New York Times” e do site Pitchfork, conta a história de uma subcultura pequena, porém muito influente, que ajudou a escrever a história da música folk norte-americana: a dos colecionadores de discos de blues e folk lançados nas primeiras três décadas do século 20.
Vários dos sujeitos perfilados no livro – e é um mundo essencialmente masculino – não têm coleções imensas. Algumas coleções não passam de 200 ou 300 discos, mas possuem vinis tão raros que adquiriram status de lendas. A autora cita discos com duas ou três cópias em circulação no mundo e relata a incansável busca de colecionadores por outras cópias dessas raridades.
Um dos trechos mais interessantes conta uma viagem que Petrusich faz com um colecionador, Chris King, a uma imensa feira de objetos usados na Virginia. King é um obsessivo, que viaja por todo o país visitando velhas fazendas e lojas de penhores, em busca de raridades para sua coleção. Mas eles dão azar: um dia antes, outro colecionador encontra, na mesma feira, um velho vinil do bluesman Blind Blake, a única cópia do disco conhecida no mundo.
Alguns dos discos mais raros do planeta são encontrados das maneiras mais prosaicas: um sujeito vê uma caixa de madeira de uma velha gravadora de blues jogada no lixo de uma casa, e descobre que ali morava um velho fã de blues, morto recentemente. Quando a família joga fora o “lixo” que ocupava o quarto do coroa, lá estão cópias, em perfeito estado de conservação, de velhos vinis da Paramount, uma mitológica gravadora de blues (escrevi sobre a Paramount no blog; leia aqui).
A loucura dos colecionadores é tanta que, ao ouvir a história de que caixas de vinis da Paramount foram jogadas num rio, décadas atrás, depois que um depósito da gravadora pegou fogo, Petrusich faz um curso de mergulho e passa dias vasculhando o fundo lamacento do rio.
Um colecionador bola uma maneira genial para descobrir velhas coleções perdidas em casas particulares: faz acordos com funcionários de funerárias para que esses, quando avistarem velhas caixas de discos na casa de falecidos, o avisem. E dá certo.
Um dos personagens mais interessantes do livro é Harry Everett Smith (1923-1991), um excêntrico, amigos dos beats, chapa de Allan Ginsberg, ocultista e considerado “pai” dos colecionadores de discos. Em 1952, Smith lançou a coletânea “Anthology of American Folk Music”, uma coleção em seis vinis que virou um marco da valorização da música folk norte-americana e divulgou nomes até então esquecidos, como Charlie Patton, The Carter Family, Blind Willie Johnson e Blind Lemon Jefferson, entre muitos outros. Olha aí a figura:
O mais admirável nessa turma de obsessivos descrita por Petrusich é que eles não são egoístas, mas fazem questão de dividir suas descobertas com outros colecionadores. A autora descreve reuniões em que velhos discos de 78 rotações são tocados para apreciação de todos. Ninguém esconde suas raridades em cofres ou depósitos. A maioria empresta seus discos originais para coletâneas e lançamentos em CDs.
Claro que alguns ganham dinheiro com as coleções, mas o mercado não é grande suficiente para deixar ninguém rico. Ninguém parece estar nessa por grana. Alguns possuem discos que valem dezenas de milhares de dólares, mas nem pensam em vendê-los, por maiores que sejam as ofertas de milionários japoneses e sauditas. Esses colecionadores veem seu trabalho como o de arqueólogos, que buscam preservar antigas culturas e dividi-las com o mundo. Bonito demais.
P.S.: Devido ao feriado, o blog volta com um texto inédito na quarta-feira. Bom feriado a todos.
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