Odair José acaba de lançar seu 35º disco de estúdio, “Dia 16”, uma ótima coleção de rocks e baladas pop com influência clara de Beatles, Dylan e – acredite – AC/DC.
A faixa-título é AC/DC puro, um baladão pesado que não faria feio na programação de uma rádio rock, se nossas rádios de rock tocassem música boa. Ouça:
No texto de apresentação do disco, o próprio Odair se diz fã de AC/DC. Também cita influências de outros ídolos, como Roy Orbison (na balada "Sem Compromisso") e Beatles (Começar do Zero"), que lembra "Drive My Car".
Outras influências ele não menciona, mas são evidentes: o teclado que abre "A Moça e o Velho" lembra muito Dylan em "Like a Rolling Stone", para depois cair num rock brejeiro com uma letra divertida, que poderia ser de Raul Seixas (aliás, o Maluco-Beleza era fãzaço de Odair e o homenageou na música “Eu Quero Mesmo”). Relembre:
Quem conhece a carreira de Odair não se surpreende com as influências exibidas em “Dia 16”. Há muito tempo, ele é um de nossos grandes compositores pop. Infelizmente, ele conviveu, por décadas, com uma pecha de brega e cafona.
Nada contra a música brega, muito pelo contrário. Nomes como Waldik Soriano, Nelson Ned e Agnaldo Timóteo têm trabalhos importantíssimos e influentes. Mas o estilo de Odair era diferente. Bolero não era a sua praia. Ele sempre cultuou o pop/rock. Amava Beatles, Paul Anka, Bobby Darin e Little Richard.
Mas Odair cometeu um grande pecado nos anos 70: fez sucesso. Suas canções –crônicas de pequenas tragédias suburbanas embaladas em pop radiofônico– foram execradas pela patrulha do "bom gosto" da MPB e jogadas no balaio do brega e do cafona.
Em meu livro “Pavões Misteriosos”, entrevistei Odair sobre sua carreira. Ele falou bastante sobre os problemas que teve com gravadoras e a crítica musical e sobre o fato de ter sido rotulado de cafona. Peço licença para reproduzir alguns trechos:
Quem conhecia bastante sobre patrulhamento era Odair José. Desde que surgira na cena musical brasileira, no início dos anos 1970, ele fora tachado de brega por causa dos temas fortes e inusitados de suas canções. Quando Caetano Veloso o convidou para um dueto no Festival Phono 73, promovido pela gravadora Philips no Centro de Convenções do Anhembi, em São Paulo, o público não aceitou e começou a vaiar a dupla durante a música “Eu vou tirar você desse lugar”. Caetano reagiu: “Não existe nada mais Z do que público classe A”.
As letras de Odair narravam, de forma simples e sem metáforas, dramas pessoais do dia a dia. Sua identificação com as classes sociais menos favorecidas era total. “Eu vou tirar você desse lugar” contava, em primeira pessoa, a história de um homem que visitava um bordel e se apaixonava por uma prostituta. Em “Deixe essa vergonha de lado”, ele falava do drama de uma empregada doméstica que escondia sua profissão do namorado. A música “Na minha opinião (Eu te quero, te adoro, te gosto)” era uma surpreendente crítica à instituição do casamento (“Na minha opinião/ o importante é se querer/ assinar papel pra quê?/ Isso não vai prender ninguém”). Outra música, “Uma vida só (Pare de tomar a pílula)”, era uma súplica de Odair à mulher amada para que ela parasse com os anticoncepcionais e tivesse um filho com ele.
Odair José nasceu em 1948, em Goiás, em uma família de posses. “Meu pai tinha fazendas, e a gente nunca precisou trabalhar.” Adolescente, ouvia o pop-rock dos anos 1950: Brenda Lee, Pat Boone, Chuck Berry, Jerry Lee Lewis, Elvis Presley, Bobby Darin, Neil Sedaka e Paul Anka. Em 1968, sem avisar os pais, largou tudo e foi tentar a carreira de músico no Rio de Janeiro. “Fiz uma sacanagem com minha família: só fui dar notícia um ano depois. Eu sabia que, se eles descobrissem onde eu estava, iriam atrás de mim.” Depois de alguns dias em um hotel na praça Tiradentes, o dinheiro acabou. Odair dormiu na escadaria do Teatro Municipal, na praia e até no banheiro do aeroporto Santos Dumont.
Para sobreviver, tocou violão em bares e boates da cidade. Na Barreira do Vasco, se apresentou em um bar com Jamelão, puxador de samba da Mangueira. “A gente tocava a noite toda. De vez em quando, o Jamelão dormia em pé, encostado na parede.” Odair correu o circuito de boates do Rio, do centro até Copacabana. O repertório era o mais variado: tango, bolero, rock, Ataulfo Alves, Dolores Duran, Altemar Dutra, Nelson Gonçalves. Também cantou “Yesterday” e “Michelle”, dos Beatles. “Quando o cliente de um puteiro pedia uma música, você tinha de saber de qualquer maneira.”
Levado à CBS pelo produtor e compositor Rossini Pinto, Odair gravou dois LPs, mas logo percebeu que precisava se livrar da “sombra” do maior astro da companhia: Roberto Carlos. “Todo mundo que gravava na CBS usava os mesmos músicos: Renato Barros na guitarra, Lafayette nos teclados, Miguel Cidras no piano, Pachequinho na regência, Paulo Cesar Barros no contrabaixo. Eram os caras que gravavam com o Roberto Carlos e eram grandes músicos, mas todos os discos ficavam com o mesmo som. E eu queria fazer uma coisa diferente.” No LP Meu grande amor, de 1971, Odair convidou instrumentistas fora do “esquema” da CBS, como o pianista Dom Salvador e o baterista Wilson das Neves. Mas Evandro Ribeiro, presidente da gravadora, não gostou.
Quando o contrato de Odair com a CBS terminou, em 1972, ele ficou no limbo. A gravadora não disse nada sobre um novo lp, e Rossini Pinto sugeriu lançar um compacto. Odair gravou “Eu vou tirar você desse lugar”. Rossini ficou furioso: “Você tá maluco? Fez uma música de puta? Por que não faz que nem o Roberto Carlos, fala de namoro, essas coisas?”. A CBS lançou o disco, mas Rossini colocou uma música dele, “Meu coração ainda é seu”, no lado A, e “Eu vou tirar você desse lugar” no lado B.
Sem apoio da CBS, Odair juntou alguns músicos, entrou em uma Kombi e partiu para uma excursão pelo Nordeste. Ficou três meses na estrada, se apresentando em pequenas cidades. Em todas, as rádios estavam tocando “Eu vou tirar você desse lugar”. Certo dia, o cantor estava em Ilhéus, na Bahia, quando foi abordado por um vendedor da gravadora: “Odair, pelo amor de Deus, a companhia tá louca atrás de você, você precisa ir urgente a São Paulo, tua música tá estourada!”. Odair voltou e foi diretamente para o programa do Chacrinha. “Eu vou tirar você desse lugar” estava em primeiro lugar nas paradas.
A CBS queria que Odair entrasse em estúdio imediatamente para fazer um novo lp. Ele disse que já tinha um disco na cabeça, com título e repertório, mas se recusou a trabalhar com Renato Barros [do grupo Renato & Seus Blue Caps], então diretor artístico da cbs. Odair queria gravar com o tecladista José Roberto Bertrami – que tocava com Elis Regina – e o baterista Ivan Conti, o Mamão. “Meu som não era mais o som do órgão da cbs, eu estava de saco cheio dessa coisa de namoro no portão.” Evandro Ribeiro foi contra e, segundo o cantor, ameaçou fazer com ele o mesmo que diziam que ele havia feito com o cantor e compositor Sérgio Murilo: “Havia uma lenda de que o Sérgio Murilo tinha peitado a CBS, e a gravadora o tinha colocado na gaveta, sem gravar. Então eu disse ao seu Evandro que meu contrato estava vencido. Ele ficou louco, chamou o pessoal do jurídico: ‘É verdade, seu Evandro, o contrato dele está vencido há seis meses’. E eu fui pra Philips”.
Na nova casa, Odair conseguiu trabalhar com quem queria. Até 1979, gravou todos seus discos com José Roberto Bertrami e Mamão, que acabariam por montar o Azymuth, grupo de jazz fusion de fama internacional. O sucesso de Odair José durante os anos 1970 foi imenso. André Midani nunca escondeu que usava os lucros dos discos do cantor para bancar as produções mais “experimentais” de outros artistas da Philips. Até a TV Globo se rendeu: um dia, Odair foi chamado ao escritório de Boni: “Que besteira eu fiz pro Boni me chamar?”. Segundo Odair, a Globo decidira pagar uma quantia por mês para que ele não se apresentasse em outras emissoras, especialmente no Chacrinha, que havia se mudado para a Tupi. “Chacrinha ficou louco, tentou me sabotar de todo jeito. Ele tinha coluna no jornal, vivia falando mal de mim. E olha que eu tinha um relacionamento antigo com ele e com a sua programadora, a Ana Lígia, uma grande amiga minha, tanto assim que dei pra ela parceria em algumas músicas, como ‘Cristo, quem é você?’.”
Odair José classifica seu trabalho, pelo menos até o fim dos anos 1970, como “de alto nível”, mas admite que os discos caíram de qualidade na década seguinte: “Eu perdi o foco, minhas produções ficaram mais vulgares. Comecei a beber muito, fumava muita maconha, só queria saber de ir pro Baixo Leblon e de fumar maconha na praia do Pepino. Eu deixei de me interessar pelas coisas, e minha música, que sempre falou da realidade, de coisas que eu via acontecerem na minha frente, sofreu”.
The post Odair José gosta é de AC/DC! appeared first on Andre Barcinski.