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Há 40 anos, Bowie caía na discoteca

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A plateia que foi aos shows de David Bowie na América do Norte, no fim de 1974, deve ter levado um susto: no lugar dos cenários imensos e da banda de “rock” que Bowie trouxera alguns meses antes, quando gravara o disco “David Live”, o camaleão aparecia agora ladeado por um grupo de músicos desconhecidos.

Ou melhor: desconhecidos para aquela plateia, roqueira e branca. Pra quem acompanhava a música black americana, aqueles músicos eram alguns dos maiores da época: Luther Vandross, cantor que gravara com Diana Ross, Donna Summer e Roberta Flack; Carlos Alomar, guitarrista da banda de James Brown; Andy Newmark, baterista de Sly and the Family Stone, e David Sanborn, extraordinário saxofonista que gravara com Stevie Wonder, Gil Evans e Todd Rundgren. Um timaço.

Na virada de 1974 para 1975, Bowie estava em meio a uma de suas maiores transformações sonoras e estéticas. Ele deixava de lado o pré-punk cru de “Diamond Dogs” (1974) e embarcava em sua viagem pela soul music, que culminaria no disco “Young Americans”, de 1975.

Naquela época, três coisas obcecavam David Bowie: cocaína, ocultismo e discoteca.

A primeira, ele consumia em quantidades industriais. Basta ver sua aparência cadavérica nos dois vídeos que ilustram esse texto. Naquela época o cantor passava dias acordado, sem comer nada exceto um suplemento alimentar que seu staff praticamente o forçava a ingerir.

O ocultismo era uma paixão antiga de Bowie. Em 1974, teve vários encontros com Jimmy Page e o cineasta Kenneth Anger, estudiosos da obra do bruxo inglês Aleister Crowley. Bowie passava dias trancado em quartos de hotel, memorizando escritos de Crowley, cheirando mais que um tamanduá e desenhando pentagramas nas paredes. Em 1976, faria um disco inteiramente inspirado em Crowley: “Station to Station”.

Já a música negra americana, de que Bowie sempre gostara, entrou com tudo em sua alma quando ele ouviu os primeiros lançamentos da gravadora Philadelphia International (PIR), chefiada pela dupla Gamble & Huff - Kenny Gamble e Leon Huff (leia aqui um texto que fiz no blog sobre a PIR). Bowie morou um tempo em Nova York e fazia visitas periódicas ao Apollo Theatre, no Harlem, onde viu show de James Brown,Curtis Mayfield, e de artistas do cast da PIR, como Teddy Pendergrass, Billy Paul, The O’Jays e Archie Bell and the Drells.

Tão empolgado ficou Bowie pelo som limpo, elegante e festivo da PIR, que montou a tal superbanda com Alomar, Vandross, Newmark e outros, levou todos para a Filadélfia e reservou semanas no Sigma Sound, estúdio onde gravavam os grupos do selo. O resultado foi “Young Americans”, seu nono álbum de estúdio.

 

 

Para os fãs de Bowie, que tinham acabado de ouvir o abrasivo e distópico “Diamond Dogs”, cheio de previsões apocalípticas e visões orwellianas, foi um choque vê-lo de terno, cantando soul music. Era mais uma prova de que a cabeça de Bowie estava sempre alguns anos à frente do gosto de seu público. Os fãs demoraram a perceber que “Diamond Dogs” era, na verdade, o encerramento do ciclo glam-pré-punk de Bowie, iniciado em 1972 com “Ziggy Stardust”.

O novo Bowie era um bandleader à moda antiga, um crooner que reciclava as tradições da black music americana e não estava mais interessado em ver o mundo pegar fogo, mas em narrar, da forma sempre críptica e enigmática de suas letras, o caos dos anos 70.

Leia qualquer análise das letras e temas de “Young Americans” e você verá uma confusão de teorias e ideias. Só Bowie sabe, ao certo, sobre o que estava escrevendo. Dá para perceber os ataques a Nixon (em “Somebody Up There Likes Me”) e "Fascination”, reza a lenda, foi inspirado em seu interesse por hipnote. Mas o disco não tem um tema central, como “Diamond Dogs”.

Quer dizer, não tinha um tema, até Bowie encontrar John Lennon em Nova York, entrar no Electric Lady Studios e gravar mais duas faixas: um cover meio sem graça de “Across the Universe”, dos Beatles, e uma canção disco chamada “Fame”.

A letra era uma tirada raivosa contra seu então agente, Tony De Fries, com quem Bowie tinha acabado de romper, e a sonoridade misturava elementos de diversos sucessos da black music, como “Footstompin’” (The Flairs), “Hollywood Swinging’” (Kool & the Gang), “The Payback”, de James Brown e “Do It (Til You’re Satisfied”), do B.T. Express.

“Fame” foi um estouro. O compacto foi o primeiro de Bowie a chegar ao topo da parada norte-americana. A vendagem de “Young Americans” só seria superada, oito anos depois, por “Let’s Dance”, até hoje o disco mais vendido da carreira do camaleão.

Tão grande foi o sucesso de “Fame” - e tão forte seu refrão - que, até hoje, muita gente considera “Young Americans” uma sátira ao culto a celebridades, quando o disco é bem mais rico e complexo que isso.

E quão insanas foram as gravações? Basta dizer que, cinco anos depois, o guitarrista Earl Slick foi tocar no álbum “Double Fantasy”, de John Lennon, e se surpreendeu quando entrou no estúdio e o ex-Beatle disse: “Que bom te ver de novo, Earl!”. Earl respondeu: “Mas onde diabos nos conhecemos?”, e Lennon respondeu: “Ora, naquela sessão de ‘Fame’, com o David”.

Slick simplesmente não lembrava ter gravado “Fame”.

P.S.: Aproveito o texto sobre Bowie para recomendar, pela enésima vez, um dos melhores livros sobre música que já li, “O Homem Que Vendeu o Mundo – David Bowie e os Anos 70”, uma análise, música a música, de todas as canções de Bowie na década de 70 (leia mais aqui).

P.S.2: Estarei fora até o início da noite e impossibilitado de moderar comentários. Se o seu comentário demorar a ser publicado, peço desculpas e um pouco de paciência.

Bom fim de semana todos.

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