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Um grande filme sobre um dos piores filmes de todos os tempos

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É por isso que eu digo que nenhum blog tem leitores tão bons: há alguns dias, a leitora Renata Teofilo recomendou um documentário disponível no Netflix americano, “Lost Soul”, de David Gregory. Vi o filme no fim de semana e não consigo parar de pensar nele. Obrigado, Renata.

“Lost Soul” conta a história da produção de um dos piores filmes de todos os tempos, “A Ilha do Dr. Moreau” (1996), uma bomba de proporções atômicas dirigida por John Frankenheimer e estrelada por Marlon Brando e Val Kilmer.

Mas o personagem principal é Richard Stanley, um cineasta talentoso que foi tirado do projeto no meio das filmagens e substituído por Frankenheimer. O filme conta a saga de Stanley, então com 30 anos, para adaptar “Dr. Moreau” para o cinema, a atribulada experiência de lidar com uma grande produção e, por fim, o colapso mental, físico e psicológico que o filme causou no cineasta.

“A Ilha do Dr. Moreau” foi a terceira adaptação para o cinema do clássico romance de terror e ficção-científica de H.G. Wells, lançado em 1896, sobre um náufrago que encontra uma ilha onde um cientista conduz experimentos abomináveis com animais, criando seres grotescos.

No meio dos anos 90, Stanley era uma grande promessa do cinema independente de horror, tendo dirigido um filme excelente, “Hardware” (1990). Mas seu sonho era adaptar para as telas “A Ilha do Dr.Moreau”, um de seus livros favoritos.

O projeto atraiu a atenção da produtora americana New Line Cinema, que concordou em dar a Stanley um orçamento modesto de oito milhões de dólares para fazer o filme.

Mas a maldição começou quando alguém sugeriu Marlon Brando para o papel de Moreau. Para espanto de todos, o recluso e excêntrico ator aceitou. Com Brando a bordo, outro superastro de Hollywood entrou no projeto – Bruce Willis. Para completar, James Woods também foi chamado. Com esse trio, o que deveria ser um pequeno filme independente virou uma produção de 35 milhões de dólares (equivalente a uns 70 milhões hoje).

Stanley dedicou quatro anos ao projeto. Além de escrever o roteiro em colaboração com Walon Green, que escreveu “Meu Ódio Será Tua Herança” (1969), de Sam Peckinpah, e com o jornalista Michael Herr, autor de uma obra-prima da literatura jornalística, “Dispatches”, sobre sua experiência cobrindo a guerra do Vietnã, Stanley criou toda a concepção visual do filme e encontrou uma locação ideal em Cairns, no norte da Austrália.

Mas as coisas começaram a desandar. Primeiro foi o divórcio de Bruce Willis e Demi Moore, que fez Willis desistir do projeto. Seu substituto foi um dos sujeitos mais arrogantes e intratáveis de Hollywood: Val Kilmer. James Woods também pulou fora e foi substituído por Rob Morrow (“Quiz Show”).

Próximo ao início das filmagens, a filha de Marlon Brando, Cheyenne, cometeu suicídio, o que pôs o projeto em risco. Ninguém conseguia falar com Brando.

Depois de algumas semanas de espera, Brando apareceu, mais louco do que nunca. Sua primeira exigência foi se maquiar todo de branco, como um personagem de teatro kabuki japonês. Depois pediu ao diretor de arte que fizesse um chapéu de um balde, que passou a usar na cabeça todos os dias. Brando chegou ao set sem ter lido o roteiro e falava coisas sem coerência.

O ator se encantou com um figurante, um dominicano chamado Nelson de La Rosa, um dos menores homens do mundo – media 71 centímetros – e exigiu que de La Rosa fosse transformado em uma versão “mini” dele próprio, inclusive usando as mesmas roupas (muitos dizem que o personagem Mini-Me, da série “Austin Powers”, foi inspirado em La Rosa).

ISLAND OF DR MOREAU 610 Um grande filme sobre um dos piores filmes de todos os tempos

A essa altura, Stanley já havia sido despedido. O diretor tivera uma crise nervosa depois de ser humilhado incontáveis vezes por Val Kilmer. O clima no set era tão bom que Rob Morrow, depois de apenas quatro dias de filmagem, ligou para a produtora e implorou: “Pelo amor de Deus, me tirem daqui, quero voltar pra minha família!” Stanley abandonou o set e desapareceu. Alguns meses depois, membros da equipe de filmagem o encontraram morando numa vila no meio do mato, balbuciando coisa sem sentido e amaldiçoando Val Kilmer.

Quem substituiu Stanley de última hora foi John Frankenheimer, então com 66 anos, um veterano de Hollywood com grandes filmes no currículo, como “Seconds” (1964) e “Operação França 2” (1975). Mas nem Frankenheimer aguentou trabalhar com Brando. Alguns dias depois do início das filmagens, foi a vez dele ligar para a produtora: “Já trabalhei com muitos atores difíceis, mas nunca na minha vida toda tive de aturar um lunático como Marlon Brando”.

A briga de egos entre Brando e Kilmer teve momentos épicos. Certo dia, cada um ficou esperando o outro sair de seu trailer, deixando toda a equipe, incluindo cerca de 50 figurantes, que haviam passado por sessões de maquiagem de mais de três horas para se transformar nos homens-animais de Moreau, esperando o dia inteiro. Uma figurante diz que foi contratada para três semanas de trabalho, mas que acabou ficando no set por seis meses. Com tanto tempo livre, o set virou uma orgia de sexo e drogas.

“A Ilha do Dr. Moreau” acabou sendo lançado em novembro de 1996 e foi destroçado pela crítica. Brando ganhou o prêmio Framboesa de Ouro de pior ator do ano. E Richard Stanley se pirulitou para um vilarejo nos Pireneus franceses, passou cinco anos sem fazer nada e só voltou a filmar em 2001 (aliás, um documentário que parece muito interessante, sobre a busca de Otto Rahn, o oficial da SS nazista, pelo Santo Graal).

Mais que um documentário sobre um filme que não deu certo, “Lost Soul” é um mergulho na insanidade – de Stanley, Brando, Kilmer, Frankenheimer – e de Hollywood. Um dos melhores documentários que vi nos últimos tempos.

Mais uma vez, obrigado, Renata.

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