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“Voz de Deus” prejudica “Narcos”

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ATENÇÃO: o texto contém “spoilers”...

A série “Narcos”, do Netflix, tinha tudo para ser memorável: um grande tema – a ascensão e queda do maior traficante de cocaína do mundo, o colombiano Pablo Escobar (1949-1993) - um elenco internacional liderado pelo brasileiro Wagner Moura e um diretor competente, José Padilha (“Tropa de Elite”, “Robocop”).

Mas a experiência de assistir à série, pelo menos para mim, tornou-se tediosa e desagradável por causa de um recurso narrativo usado à exaustão e de forma atrapalhada: a narração em “off”.

Que uma série de dez episódios e baseada em uma história real use, no primeiro episódio, a narração para explicar a trama, situar o espectador e descrever os personagens, é compreensível e até esperado. Mas que essa narração costure a trama inteira me parece um erro absurdo.

A série é narrada por Steve Murphy (Boyd Holbrook), um agente do governo norte-americano que é enviado à Colômbia no início dos anos 80 para caçar Pablo Escobar.

Murphy é a “voz de Deus” na série. Onisciente, não só conta ao espectador tudo que está acontecendo, como ainda descreve os sentimentos e aflições dos personagens.

Assim, vemos – ou melhor, ouvimos – Murphy dizendo como Escobar é um “homem de família” e como o traficante sonha em tornar-se um herói do povo colombiano – coisas que poderíamos perfeitamente compreender sem a narração.

Vi os três primeiros episódios de “Narcos”, e minha vontade de continuar é mínima. Por vezes me senti um idiota, tendo a história inteira explicada para mim nos mínimos detalhes. Não tenho absolutamente nada contra a narração em “off”, é um recurso narrativo válido e que foi usado muito bem por muita gente – Scorsese, por exemplo, adora – mas aqui ela trabalha contra a série.

Em vez de simplesmente ajudar o espectador na compreensão de subtramas mais complexas, a narração é usada como “muleta” da narrativa, conferindo a tudo um ar didático e simplista.

Logo na primeira sequência, vemos uma equipe da polícia colombiana interceptando uma ligação telefônica de um capanga de Escobar. A narração explica que, naquela época, não havia celular ou GPS. É realmente necessário explicar algo tão óbvio?

Mas o pior é quando a narração acaba com as surpresas da trama. No primeiro episódio, Escobar, num gesto ousado, vai a uma delegacia reclamar que uma carga de contrabando foi interceptada por policiais que ele havia subornado. O traficante é preso e tem sua foto tirada. A narração diz algo como: “Aquela foto custaria caro a Pablo”.

No terceiro episódio, a foto realmente prejudica Escobar, quando ele é eleito para o Congresso colombiano e Steve Murphy descobre a foto e prova que Escobar já fora preso por tráfico.

O uso da narração estraga a surpresa. Não teria sido mais emocionante e surpreendente para o espectador descobrir a foto junto com Murphy? Como já havíamos ouvido a “voz de Deus” dizendo que aquela foto ressurgiria depois, o impacto da descoberta foi mínimo.

Há outra cena importante em que a narração acaba com a tensão dramática: o parceiro de Murphy, Javier Peña (Pedro Pascal) é amante de uma prostituta, Helena (Adria Arjona). A moça é informante de Peña e vive cobrando do policial a promessa de conseguir um visto de trabalho para os Estados Unidos, para onde ela quer se mudar com a filha. Helena conta a Peña que vai “trabalhar” numa reunião de traficantes em um luxuoso hotel de Medellin, onde Escobar se reunirá com a cúpula do crime local. Peña pede que ela colha informações sobre o encontro.

Helena acaba na cama com o sádico José Gacha (Luiz Guzmán), um traficante conhecido por “Mexicano”. A narração diz algo como: “Mas Helena queria tanto ir para os Estados Unidos que acabou cometendo um erro...”. O erro foi perguntar a Mexicano como fora sua reunião com os colegas traficantes. Gacha percebe que Helena é informante e manda seus capangas darem um corretivo na coitada.

Imagine como a cena ganharia em tensão e drama se a narração simplesmente não existisse, se víssemos Helena cometendo o erro e Gacha percebendo o vacilo da moça?

Por que uma série de TV precisa fazer isso? Medo que o espectador não entenda a trama? Será necessário explicar 38 vezes que o traficante Carlos Lehder, que tem uma suástica tatuada no braço e passa 24 horas por dia citando frases de Hitler, é simpatizante nazista? É preciso fazer um comentário sobre a corrupção da polícia colombiana toda vez que um tira local trair a investigação e avisar a Escobar sobre as ações contra ele?

Será realmente necessário entregar tudo de bandeja ao espectador, como se ele fosse incapaz de captar qualquer sutileza?

WES CRAVEN, R.I.P.:

Escrevi domingo à noite sobre Wes Craven para a "Folha" e amanhã publico aqui no blog um texto sobre o criador de Freddy Krueger. Aqui vai o texto da "Folha": http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2015/08/1675748-no-terror-adolescente-wes-craven-foi-o-melhor-dos-ultimos-30-anos.shtml

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