Toda vez que ouço alguém dizendo que quer ser jornalista, tenho vontade de perguntar: “Tem certeza? Por que agora?”.
Em todo o mundo, redações encolhem e publicações fecham. O mercado está uma desgraça. Mas se o jornalismo agoniza, outro setor está em expansão e vem absorvendo um número considerável da mão de obra que saiu das redações: o mercado da assessoria de imprensa e relações-públicas.
Eric Alterman, professor de jornalismo do Brooklyn College, fez uma coluna no site Takepart com números alarmantes (leia aqui): hoje, nos Estados Unidos, há 4,6 profissionais de relações-públicas para cada jornalista (a proporção era 3,2 para 1 em 2004 e de 1,2 para 1 em 1980).
Alterman informa que o salário médio de um repórter nos Estados Unidos equivale a 65% do salário médio de um assessor de imprensa, e que 60 a 65% dos estudantes de jornalismo em universidades norte-americanas escolhem trabalhar em relações-públicas.
No Reino Unido, a situação não é diferente: segundo dados do “Press Gazette”, publicação especializada em jornalismo, o número de jornalistas caiu de 70 mil em 2013 para 64 mil hoje. Enquanto isso, o número de pessoas que se descrevem como “profissionais de relações-públicas” subiu de 37 mil em 2013 para 55 mil.
Quero deixar uma coisa bem clara: não tenho absolutamente nada contra relações-públicas. Tenho grandes amigos, muitos saídos de redações de jornais, que trabalham em assessorias de empresas e governos. É uma opção profissional excelente e admirável.
O problema ocorre quando as duas profissões se misturam, criando uma confusão entre os papéis do jornalista e do relações-públicas. Essas confusões estão se tornando cada vez mais comuns. A impressão é de que existe toda uma geração que não entende mais a diferença.
Falando especificamente da minha área, o jornalismo cultural: há uma profusão de blogs, sites, colunas e revistas que são meros reprodutores de informações passadas por gravadoras, estúdios de cinema e canais de TV. Na teoria, são empreendimentos jornalísticos; na prática, são assessores de imprensa.
Muitos dos “jornalistas” que trabalham nesses veículos ganham um troco escrevendo releases e textos para empresas e não cansam de elogiar todos os filmes, discos e séries lançados. Canso de receber releases de filmes e discos e depois ver o texto integralmente reproduzido em “críticas” por aí.
Claro que esses jornalistas “amigos” recebem tratamento preferencial, como viagens pagas a sets de filmagem, entrevistas exclusivas com músicos, cachês para participar de "coberturas", etc. É um acordo de cavalheiros, em que o estúdio ou a gravadora entram com os pés e o “jornalista” entra com o capacho.
Ontem, o leitor Leonardo sugeriu um texto do “Guardian” sobre como estúdios de cinema distorcem frases de críticos para dar a impressão de elogios aos filmes (leia aqui). Um exemplo conhecido é o da frase de Peter Travers, crítico de cinema da revista “Rolling Stone”, usada no material de divulgação do abacaxi “Garota Exemplar”, de David Fincher: “Um filme perfeito para casais”. O que o estúdio espertamente excluiu foi a continuação da frase: “...se os casais quiserem se destruir”.
O artigo também fala dos muitos e muitos “críticos” sem nenhuma relevância ou talento, mas que estão sempre dispostos a criar frases elogiosas e de efeito para aparecer em anúncios e cartazes.
Essas relações esquisitas entre jornalismo e o marketing das empresas não é novidade. Estúdios e gravadoras sempre tiveram seus colunistas preferidos, aqueles eternos otimistas, incapazes de falar mal de um filme de um estúdio camarada ou de um disco daquela gravadora bacana que sempre manda uns CDs para sortear para os leitores e bombar seu Twitter. Com a explosão do colunismo de Internet e o declínio de jornais e revistas, o capachismo triunfou. Parabéns a todos os envolvidos. Inclusive ao público.
E em homenagem ao velho jornalismo, aqui vai uma imagem antológica de Dizzy Gillespie clicada por meu amigo José Luis da Conceição, do "Notícias Populares":
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