As melhores críticas e opiniões são aquelas que nos fazem enxergar, por outra ótica, coisas que julgávamos conhecer a fundo.
Dia desses, li um texto do “The New York Times” sobre um de meus autores prediletos de romances policiais, o norte-americano Jim Thompson (1906-1977), quando me deparei com uma frase de Robert Polito, biógrafo do escritor: “Thompson não é como os escritores aos quais ele é frequentemente comparado. Ele não é como Hammett, Chandler ou Cain. Seus livros não são realistas, mas estão mais perto do fantasmagórico”.
Bingo. Pelo amor de Ed McBain, como eu não tinha percebido isso antes? Trinta anos lendo Jim Thompson e não tinha me ligado que ele não escreve livros de crimes, mas histórias sobrenaturais?
As pistas eram claras. Stephen King, um dos maiores fãs de Thompson, escrevera: “Existem três coisas que Thompson se permite fazer em seus livros: ele se permite enxergar tudo, se permite escrever tudo, e então se permite publicar tudo (...) Ele era louco. Chegou correndo no subconsciente americano com um maçarico numa mão, uma pistola na outra e gritando como um alucinado. Ninguém nunca chegou perto dele”.
Resumindo: a ficção de Jim Thompson não tem limites ou barreiras. Ele não tem medo de escrever as maiores barbaridades, de criar personagens exagerados e caricatos e inventar situações extremas. Tão extremas e irreais que chegam, como muito bem definiu Polito, ao sobrenatural. Thompson usou um dos gêneros costumeiramente mais presos a normas e convenções – a literatura policial – e o transformou num parque de diversões de experimentos estilísticos extremos e temas estranhos.
Claro que eu já havia percebido esse gosto de Thompson pelo inusitado. Vários de seus livros são narrados em primeira pessoa e têm longas passagens em que os personagens refletem sobre os crimes e maldades que estão cometendo. Suas narrativas são esquisitas e fogem do lugar comum.
“The Criminal” (1953), um de meus livros prediletos de Thompson, conta a história de uma adolescente que é violentada e morta numa área rural de uma pequena cidade interiorana. O maior suspeito é outro adolescente, seu colega de escola. Na verdade, o livro não “conta” a história, mas relata os fatos de acordo com os pontos de vista de uns dez narradores diferentes, incluindo o pai do menino, o delegado da cidade, o promotor de Justiça, um repórter de um jornal local e um menino de dez anos, negro, miserável e analfabeto, que pode – ou não – ter testemunhado o crime.
Talvez o truque de usar múltiplos narradores e versões para a mesma história tenha sido inspirado no filme “Rashomon” (1950), de Akira Kurosawa, mas em “Savage Night” serve para Thompson destilar uma das principais marcas de sua literatura, que é a visão ácida e desesperançada da raça humana. Em seus livros, quase ninguém presta. Vizinhos odeiam vizinhos, boatos maldosos se espalham como fogo, pessoas que a família do menino julgavam amigas condenam o jovem a priori. É cada um por si.
Depois de descobrir a frase de Polito, reli meu exemplar de “Savage Night” (1953), 149 páginas de pura bestialidade, e cheguei à conclusão que o cara estava certo: Jim Thompson não escreve sobre este mundo. O livro conta a história de Charles Bigger, um matador de aluguel que chega a uma pequena cidade com a missão de se fingir de estudante, hospedar-se na casa de um sujeito e matá-lo. O sujeito é um informante da polícia e está prestes a entregar um chefão da Máfia. Bigger é um homem doente, tuberculoso e que perdeu os dentes por conta de uma infecção. No meio da narrativa, o leitor não sabe mais se o que ele descreve é a realidade ou produto de uma mente perturbada. Na casa, Bigger se envolve com duas mulheres, a esposa do homem que ele precisa matar e outra hóspede, uma estudante gostosérrima e que só tem uma perna, resultado de uma doença genética. Bigger também parece sofrer alucinações, e algumas passagens do livro lembram mais o suspense psicológico de Henry James e Maupassant do que a literatura policial de Raymond Chandler.
Thompson escreveu roteiros de dois dos meus filmes prediletos de Stanley Kubrick, “O Grande Golpe” (1956) e “Glória Feita de Sangue” (1957), além de ter vários romances adaptados para o cinema. Os melhores são “Coup de Tourchon” (Bertrand Tavernier, 1981, adaptado de “1280 Almas”), “Os Imorais” (Stephen Frears, 1990) e “Os Implacáveis” (Sam Peckinpah, 1972).
Os livros de Jim Thompson são curtos – quase nunca passam de 200 páginas – e tão intensos e empolgantes que é impossível largá-los. Vários estão disponíveis em português. Por ordem de sugestão: “O Assassino em Mim”, “Os Imorais”, “1280 Almas” e “Os Implacáveis”.
Bom fim de semana a todos.
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