“Só conheço dois cineastas dos últimos 30 ou 40 anos que conseguiram abrir novos caminhos para o cinema: David Lynch e Nicolas Roeg.”
A frase é do cineasta Danny Boyle (“Trainspotting”), numa entrevista nos extras do DVD de “Inverno de Sangue em Veneza” (“Don't Look Now”), o clássico de terror psicológico que Roeg dirigiu em 1973. O DVD foi lançado no Brasil pela Versátil.
Não dá pra discordar de Boyle. De fato, Roeg foi um dos maiores inovadores do cinema das últimas décadas, e seus filmes continuam surpreendendo pela ousadia e experimentalismo. Se você nunca viu “Don’t Look Now”, sugiro correr à locadora mais próxima. É um daqueles filmes que mudam seus parâmetros de “bom cinema”. Impossível ver essa obra de arte e depois aceitar a babaquice e conservadorismo do cinema atual. Tudo fica pequeno e covarde.
Inverno de Sangue em Veneza - Com Donald Sutherland por thevideos no Videolog.tv.
“Don’t Look Now” é baseado num conto de Daphne Du Maurier - cujas obras foram adaptadas por Hitchcock em “Rebecca” e “os Pássaros” – e conta a história de um casal, John (Donald Sutherland) e Laura (Julie Christie), que perde a filha pequena afogada em um riacho. Algum tempo depois, os dois vão a Veneza, onde John, um restaurador de antiguidades, trabalha na renovação de uma velha igreja.
Em Veneza, John e Laura conhecem duas senhoras britânicas. Uma delas é cega e tem poderes mediúnicos. Ela diz a Laura que consegue ver a filha morta, e que a menina está tentando se comunicar com o casal. Enquanto isso, a polícia local investiga uma série de assassinatos misteriosos.
“Don’t Look Now” confundiu muita gente em 1973. Muitos reclamaram do estilo fragmentado e surrealista da narrativa, e o público não aceitou bem o filme. Com o passar dos anos, virou um “cult”, adorado por gente como Guillermo Del Toro, Danny Boyle, Christopher Nolan, M. Night Shyamalan e muitos outros.
Mais importante que a história do filme é a maneira como Roeg a conta. Usando narrativa não-linear, flashbacks, imagens que se repetem ao longo do filme, associações subjetivas, cenas em zoom que destacam detalhes de imagens, longos travellings claustrofóbicos pelos becos labirínticos de Veneza, e a música atonal e assustadora do italiano Pino Donaggio, ele mostra as feridas psicológicas que a morte da filha deixou em John e Laura.
Sugiro assistir aos extras do DVD, que trazem entrevistas com Roeg, o montador Graemme Clifford e o fotógrafo Anthony Richmond. É uma pequena aula de cinema.
Se você se interessar pelo trabalho de Roeg, pode procurar outros de seus grandes filmes. Meu favorito é “Walkabout / A Grande Caminhada” (1971), um delírio surrealista sobre duas crianças australianas que são deixadas pelo pai no deserto para morrer e acabam socorridas por um aborígene.
Outro filmaço é “Performance” (1970), em que James Fox (não “Jamie Foxx”, claro) faz um gângster jurado de morte que se refugia na casa de um rockstar, vivido por Mick Jagger. É um dos filmes mais estranhos e marcantes dos anos 70. E falando em popstars esquisitos, se você der sorte pode achar uma cópia de “O Homem Que Caiu na Terra” (1976), com David Bowie interpretando um extraterrestre.
Agora, se as estranhices de Roeg caírem no seu gosto, procure o DVD de “Eureka” (1983), que a Flashstar lançou há alguns anos (comprei por 20 mangos outro dia). Gene Hackman faz um explorador dos anos 1920 que encontra, literalmente, uma montanha de ouro. Ele se torna o homem mais rico do mundo, mas se desespera quando a filha (a sensacional Theresa Russell) cai de amores por um misterioso oportunista, vivido por Rutger Hauer. O filme é um delírio lisérgico à Jodorowsky, com algumas das cenas mais bonitas que já vi num filme.
Pra finalizar: ano passado, Roeg lançou “The World is Ever Changing”, livro em que fala sobre seus filmes, além de seu trabalho como assistente e diretor de fotografia de David Lean em “Lawrence da Arábia” e “Doutor Jivago”. Roeg escreve: “A imagem em movimento ainda é uma combinação mágica de realidade, arte, ciência e sobrenatural – além de uma porta para a natureza do Tempo e, talvez, a primeira peça para solucionarmos o quebra-cabeças que explica o que estamos fazendo aqui na Terra.”
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